terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aberração



Ele mergulhou e se banhou em luz. Quando saiu daquela bacia quebrada, as asas já brilhavam com perfeição. A cura tinha sido incrível, nem parecia mais aquela criatura cotidianizada, da velha selva de pedra. Ele foi se acostumando aos poucos com a sensação que traz o vôo livre; o vento na pele, a vertigem da altura, a multiplicidade de direções e sentidos a serem traçados. A potência era tão grande, que demorou a se acostumar com tantas possibilidades. Mal sabia ele que poderia ser assim tão, tão, tão humano...

Mas até chegar a esse ponto não foi tão fácil, o percurso foi confuso. Não foi pela escuridão da fé, nem pela luz da razão, muito menos de modo equilibrado e diplomático. A guerra foi em outra dimensão, em um plano totalmente inédito, meio abstrato, meio concreto. Naquele cenário vazio, recheado de uniformes, em meio àqueles objetos sedutores que valiam tudo, ele, como um anfíbio acuado, foi inchando, mas inchando tanto, que acabou por explodir, coroando-se assim rei de si mesmo! Nenhum fantasma, nem zumbi, com suas palavras autoritárias e vencidas, conseguiram mais se aproximar daquele ser esparramado, insubordinável.

Aquele poder não gerava solidão, não era como na cidade, era diferente, não dá para transformar a sua perfeição em palavras perfeitas, pois nem a mais apurada técnica é capaz de traduzir a liberdade de ser sem ter que ser... A ruptura foi dolorosa. Claro que muito mais pelo costume do que por qualquer outra coisa. O botão de dar corda, aquele enfiado no meio de suas costas, foi bruscamente arrancado, para que, enfim, desse lugar àquelas asas cansadas de tanto serem guardadas pelas empoeiradas presas mecanizadas, fazendo com que surgisse a maior aberração de todos os tempos!