segunda-feira, 4 de maio de 2015

Flagelo




Toda essa decadência, esses ferros rangendo, essa repetição, quando quebrada, libera uma dor. Essa lágrima que cai, indo embora, levando o cachorro velho, o livro, a avó, a cama de casal, o ventilador quebrado. Tudo isso no peito, rasgando, sangrando. Tudo vem comigo, como asas pesadas, arrastadas pelo amor. Sou só um corpo no meio do infinito a me mover, a me movimentar, a me deslocar. Não sou mais que uma formiga, que busca caminhos deixados pelas companheiras, eu busco caminhos seguindo ruas já feitas há séculos. Eu me alimento do pão acostumado à mão poeirenta da esmola. O mundo é grande e eu caibo naquela cabana à beira do rio; eu caibo em uma rotina de ajudante da velha cega. Eu vivo glórias de assistir meninos brincar com passarinhos. Eu perdi na vida a minha alma admirada pelas damas. Eu me embrenhei pela floresta sem determinadas estradas. Arrastei-me até o pé da lua para sentir o seu hálito. E senti que iria virar pó, que iria ser destruído por ela, com o meu rosto iluminado na noite alta. Eu chorei como quem nasce de repente. A minha lágrima se misturou à terra. À imensa terra por onde se caminha. Uma luz imensa se apagou. Eu estava dentro dela. Foi brotado muito escuro na minha frente, dentro do meu olho. Até surgir a fogueira antiga. Uma lembrança, um sonho, um futuro. Sem desespero, eu caminhei. Ao redor da fogueira, contavam histórias. Eu dei alguns risos sinceros, aos poucos. Eu estava sóbrio, de lágrima seca grudada no rosto. Brilhou uma faísca feliz nos meus olhos, sem pensar no mistério. O meu riso mais ingênuo e feliz. Eu estava entregue ao milênio. Eu iria participar do milênio. Eu me sentia feliz. Eu ri esquecido de tudo. Eu era uma criança rindo, feliz, cercada por sustos e mundos para depois. Meu olho perdido veio depois, que todo mundo se levanta e se vai caminhando para voar na sua vida. Eu fico hipnotizado, levanto e ando perdido, com as minhas tralhas. Vou resolvido. A minha herança fica no bolso, que é feito no próprio corpo, um peito aberto. Eu sigo. E lembro aquele rosto que assenta no meu. De outras vidas. De infâncias antigas. Eu lembro. E ando mais adiante. Dentro de um ônibus. A cidade quente. Eu enfrento uma cidade inteira. Pequeno, distraído, espantado, contraído. Minha mão treme. Minha voz quase que nem sai. Mas eu prossigo. Morro de medo de ares trêmulos, invisíveis. Entro na firma para o meu sustento. Subo escadas e desço correndo. Fico ansioso para subir a alma pr'aquela estrela na noite, calado, no quintal, em silêncio. Que eu me trouxe, até o lixo de mim, que às vezes eu me sinto um lixo. E nunca mais descolo de mim, até morrer. Nem sei viver direito por dentro. Escrevo por dentro do meu sangue corrente, que bombeia o meu corpo. Sentei na calçada da cidade longe, sozinho. Sentei na cama de frente para janela. E não encontrei nada. Olhei muito tudo e não vi nada. No meio do asfalto quente, vi a amiga se aproximar. Trêmulo e sujo, movi os meus dois braços. Ela me abraçou longamente. E por baixo do meu soluço teve vibração de arrepios, de um vazio futuro. Eu estava incrédulo e mudo. Fabularam que viver era outra coisa. Eu só fiz estar perdido no mundo, mesmo parado. Perdido e vivo. Muito vivo. E perdido. No mundo.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Percepção




Sem notar, deixava o cotovelo atritando sobre a mesa. Ao sentar ou ao deitar, não percebia o corpo meio torto. Às vezes, enquanto andava, sentia uma dor muito fina, como se algum espinho muito pequeno tivesse atravessado a sua pele. Quase sempre, no meio dos afazeres, alguma luminosidade lhe agredia os olhos. E era raro não ter que lidar com alguma saliência mais desconfortável, onde quer que se recostasse.

Mas eram tão comuns esses pequenos desconfortos, que nem se sentia direito. Achava que isso devia fazer parte do próprio ato de viver. Sem pensar muito, acreditava que isso fosse da própria natureza do existir. Só de vez em quando, alguma alma generosa lhe aconselhava outras formas de ser corpo. O que ele seguia com ar de obediência, mas como se estivesse realizando um ato muito excepcional. E, no geral, ia levando a vida assim mesmo, com essas dores imperceptíveis infestando o seu jeito banal de ser humano; com essas minúsculas picadas de mosquito dando forma ao seu íntimo, sem perceber.

Sono na tempestade



Pairava no ar, o aquecimento que antecede os temporais
Risadas distantes me chegavam
Um sono imprevisto me embalou
Eu não sabia se sonhava ou se cansava

Na minha imaginação havia esta lembrança:

Eu respirava em uma rua calma
Por onde umas poucas pessoas de vestes simples
Passavam

Eu parava no meio da rua
E nenhum carro passava
- era a liberdade.

Dava pra ver, ao longe, um horizonte laranja
Eu estava pequeno e amplo
Eu era a minha própria criança

Suei muito de calor
Esse sono é o maior que eu não vi
Faltava chover 
Para o meu corpo encolher
Que o clima todo desabava em sonhos.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Tudo





Navegante,
com a boca toda aberta nas ondas,
na espuma das águas,
já está muito longe, a praia.

(Fui beber o mar)

Com teu corpo tão pequeno,
nessa imensidão azul,
pelo que procuras, navegante?

(Estou engolindo o mar)

Também o céu está azul, navegante.
E essa tua navegação passa bem por miragem,
aqui da terra, contemplando o mar.

(Eu quero o mar
Eu quero o mar
Eu quero o mar)

Mas como mínguas, pobre navegante,
descobrindo que nem toda a água do mundo
há de saciar.

domingo, 24 de agosto de 2014

Monstro



Há um monstro em mim
que ninguém vê.
Ele sou eu na padaria,
eu atravessando a praça,
eu olhando fundo.
E através.

Há um monstro em mim,
que passa pelo senhor e não ajoelha,
e ninguém ouve,
e ninguém vê.
Eu sou tão invisível quanto ele.

Há um monstro em mim
que dorme triste em esquinas
dentro de mim,
e que se arroga firme, sem efeito,
a não ser em mim.

Por onde ando,
sigo acompanhado.
Por onde vivo,
ele vai calado.
E há em mim
esse monstro abandonado.

sábado, 2 de agosto de 2014

Perfumes




Dessas ruas escuras,
vazias,
sempre exalam cheiros e perfumes teus,
porque para mim
toda a doçura que há no mundo é tua.

Nessas ruas anoitecidas
e silenciosas,
por onde passo pra qualquer lugar
(sou eu quem atravesso a cidade)
e piso seus calçamentos desconfortáveis,
alguma voz, uma conversa de portão,
eu atravesso.

Nessas ruas sonolentas
por onde passo
sem sequer perceber,
é você quem amorena a minha mente
e se faz lua nesse céu nublado.
É você quem enche meus pulmões
desses aromas sonhados, recordados...
que me fazem percorrer pela cidade novamente,
e mais uma vez,
depois de já ter por ela toda caminhado...