terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Empatia



Posso ouvir o teu choro de onde eu estiver, mas não faço idéia de onde você esteja. Procuro-te e não te encontro. Mesmo assim, e bem por isso, o seu soluçar tem me causado calafrios e a tua dor tem berrado alto em meus ouvidos.

Mostre-se, diga-me onde você está! Preciso te ajudar, curar teu vazio, fazer algo que faça isso parar. Assusto-me a cada tosse, a cada mínimo murmúrio teu. Ultimamente tenho até andado olhando pra todos os lados, o mais atento possível, e nada.

Cada vez mais claramente escuto o teu íntimo. Até mesmo tuas lágrimas mais discretas e teus choros mais secretos não param de me alcançar. Tenho ficado muito angustiado mesmo com o fato de não conseguir saber de onde isso tudo vem, desconfiando cada vez mais do que isso tudo possa estar se tornando.

E é assim que, insistentemente, com cada vez mais frequência, não tenho mais parado de sentir toda essa tua tristeza que não passa, todo esse teu sofrimento inevitável, que já estão se tornando, quase que exclusivamente, essa minha agonia que perdura...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Isso



O que é isso que surge assim tão de repente, como se já estivesse ai, como se já estivesse sempre em todo o lugar? O que é isso que está alerta demais, cheio de sustos e perseguições, pavores e assombrações? O que é isso que está chegando, que está vindo logo ali, novamente, sem parar de chegar?

Isso que me assombra, que me amedontra, que nunca me evita. Isso que me faz sentir minha própria dimensão, dentro de qualquer imensidão. Isso que anda em círculos, que faz os bichos andarem pelos cantos, cabisbaixos. O que é essa coisa que só não me alcança mesmo por já está no próprio ritmo da minha respiração? O que é isso de que quase sempre me esqueço?

E se já faz tempo que nem parece mais alucinação, o que é que é isso mesmo, então?

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Morrer de rir



Morro de rir dessa sua confusão, desse seu jeito de viver por achar que sabe, por tentar dizer que, em verdade, nada sabe. Dou muita risada dos seus compromissos, das suas missões atrapalhadas, sonhadas, imaginadas, que vão sendo trituradas, arrebentadas, redimensionadas.

Uma viagem que nem se completa, um destino que está em toda parte, sem se encontrar em parte alguma. A velocidade sem vento, tanto lamento. Eu vivo é rindo do seu ser em movimento, atento, assustado com o tempo.

E esses sinais, essas buzinas, esses barulhos, esse labirinto, essa perdição, esse desalento. Disso tudo eu me distancio tanto, mas tanto, que sumo da minha própria vista em certo momento, sentindo minhas delícias se multiplicarem, as emoções se redobrarem, como se já não houvesse outro sentimento. Fingindo esse calor não mais existir, fingindo para sempre partir, fingindo tantas coisas, todas as coisas que se há de fingir. Ah! Como é maravilhoso morrer de rir...

domingo, 18 de julho de 2010

Insonhar



Aquele acordo silencioso possuía um mistério nada saboroso. Não explicaram as regras, não explicaram o jogo, mas eles viviam claramente daquele jeito, como se soubessem, como se esperassem, como se concordassem. Os corpos iam de um lado para o outro, em um mecanismo absurdamente valoroso. Apesar de toda a reza, apesar de todo o choro, apesar de toda a euforia, de toda a mentira, o mito, a palavra, mesmo com toda a vontade, o acordo eles cumpririam. Nem precisavam saber, pois assim mesmo sempre saberiam. Ao silêncio nunca resistiriam.

Vingaram as distrações, a dormência e as ilusões, eis o segredo dos corações, a dor latente de um ser sem paixões, de enfim, nada temer, pois esta insônia toda teria mesmo que ceder. Foi só alucinação, foi só impressão. Passa hora, passa tempo, passa agora.

Aos poucos, os tons vão baixando, os instrumentos parando, as vozes sumindo. Bem baixinho, isto tudo acontecendo. Sorrateiramente vencendo, mesmo anoitecendo, mesmo amanhecendo, adormecendo, adormecendo, adormecendo...


O relógio, o sonho, a vida, o engano. São olhos abertos, vermelhos, gana e vontade. Vigília e pulso, cochilo e coragem. Fantasma, zumbi, insônia, agonia. Não cansa, não cansa, não cansa de toda a lembrança, o branco, o escuro, o nada, o absurdo. Deito, leito, vibro, bailo, madrugo. Aceito, direito, é cedo, é isso, consigo, vencido, morto, o acordo, silêncio é talento, nem fecho, nem tanto, nem tento, é só o momento, não surpreendo, defunto, inundo, imundo, vou fundo, profundo, no fundo do mundo... Anda, corre e voa, que luz não magoa e vai à toa, silêncio ecoa, ecoa, ecoa, ecoa...



Nana nenem
que a cuca vem pegar
papai foi pra roça
mamãe foi trabalhar.
Nana nenem
que a cuca vem pegar
papai foi pra roça
mamãe foi trabalhar...

domingo, 13 de junho de 2010

Nada



E a vida, quê é?
Um sonho do não-ser?
Um sopro sem porquê?
Vivo sem saber...

Vivo?

Se for perdido,
tanto faz...
Se não há perigo,
já não importa mais...

Eis a morte,
derrubando tudo.
Grosseira, ligeira...

Não foi nada,
não é nada.
É vida, é morte,
sorte, norte, corte.
Nada.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Gênese



Quando me dei conta, eu já acontecia... Cada passo meu ia se misturando àquela confusão, àquele turbilhão incompreensível... Era como se eu estivesse sempre correndo no interior de uma imensidão caótica. Homens dourados, em coros dramáticos, circulando ao meu redor, sem nunca desafinar, não paravam de falar sobre um certo poder de resgatar algo maior, infinito, alguma suposta preciosidade perdida, que me daria sentido, que me daria solução, que me revelaria experiências reais, concretas, verdadeiras. Esses seres parecem esquecer que o meu acontecer é constante, independente, selvagem. Não preciso que me consolem, que me prometam justiça, caridade e vingança. Estou prosseguindo com o que vejo, sentindo a terra em minha pele, a energia em meu espírito e a vontade de gritar com minha própria garganta, por meus próprios motivos.

Sinto a força do insistente amanhecer, daquilo que me faz voar, mesmo soterrado, daquilo que me retira tudo antes de eu nascer e que, ao mesmo tempo, me dá corda para tentar recuperar. Recuperar o fôlego, recuperar o ar que preciso, recuperar as cores com que posso brincar.

Não preciso que se desculpe, que pinte telas belíssimas para admirações olímpicas. Não pedi retrato-falado, retrato-bem-elaborado, retrato-inventado. Não preciso estar inteiro, quero mesmo é estar íntegro, sem suas digressões, sem sua possessividade. Não adianta, não me sinto ligado a suas imaginações, nem mesmo às minhas que nascem das suas. Eu tenho meu próprio acontecer, meu próprio poder.

Ladeira abaixo, cantarolo com pássaros de asas quebradas. Não quero falar sobre eles. Me calo. Canso das batidas nas pedras pontiagudas, das batidas do coração, das batidas daquela velha canção em repetição. Não preciso de uma imensidão que me console, nem de uma podridão que se apiede de mim. Se ainda tenta falar por mim, é porque teme minha escalada em sua civilização.

Não, não quero sua defesa, nem sua solução. Meu começo é meu momento, minhas nostalgias e ancestralidades são minhas. Você nunca pediu minha permissão. Não preciso de suas palavras, elas só fazem voar como penas, fingir coisas que não existem. Se não consegue me entender em minha condição, é porque esquece que foi o mamute que inventou sua civilização.

Eu até entendo sua vigilância cerrada, mas saiba que qualquer vacilo, qualquer deslize seu, entro pela porta da frente sem começo algum, sem explicação, sem coesão. E como sou fruto de sua imaginação, ajeito sua cabeça em um segundo, com todas as pedras e paus que tenho na mão. Quer continuar com historinhas? Crie os terrenos que quiser, sei que tem boa imaginação, só não esqueça que também surjo do vento, e nesta bagunça toda, posso surgir de qualquer direção.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aberração



Ele mergulhou e se banhou em luz. Quando saiu daquela bacia quebrada, as asas já brilhavam com perfeição. A cura tinha sido incrível, nem parecia mais aquela criatura cotidianizada, da velha selva de pedra. Ele foi se acostumando aos poucos com a sensação que traz o vôo livre; o vento na pele, a vertigem da altura, a multiplicidade de direções e sentidos a serem traçados. A potência era tão grande, que demorou a se acostumar com tantas possibilidades. Mal sabia ele que poderia ser assim tão, tão, tão humano...

Mas até chegar a esse ponto não foi tão fácil, o percurso foi confuso. Não foi pela escuridão da fé, nem pela luz da razão, muito menos de modo equilibrado e diplomático. A guerra foi em outra dimensão, em um plano totalmente inédito, meio abstrato, meio concreto. Naquele cenário vazio, recheado de uniformes, em meio àqueles objetos sedutores que valiam tudo, ele, como um anfíbio acuado, foi inchando, mas inchando tanto, que acabou por explodir, coroando-se assim rei de si mesmo! Nenhum fantasma, nem zumbi, com suas palavras autoritárias e vencidas, conseguiram mais se aproximar daquele ser esparramado, insubordinável.

Aquele poder não gerava solidão, não era como na cidade, era diferente, não dá para transformar a sua perfeição em palavras perfeitas, pois nem a mais apurada técnica é capaz de traduzir a liberdade de ser sem ter que ser... A ruptura foi dolorosa. Claro que muito mais pelo costume do que por qualquer outra coisa. O botão de dar corda, aquele enfiado no meio de suas costas, foi bruscamente arrancado, para que, enfim, desse lugar àquelas asas cansadas de tanto serem guardadas pelas empoeiradas presas mecanizadas, fazendo com que surgisse a maior aberração de todos os tempos!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Supermundo



Dos escombros saem criaturas imundas rastejando por pedaços de vida. O odor que preenche aquele lugar é repugnante, ficar ali é uma sensação levemente insuportável. Os olhos decaídos de cada ser contemplam suas próprias desgraças. Em meio ao lixo, pétalas perfumadas são regadas por lágrimas podres dessas miseráveis criaturas.

Sem se esforçar para sentir qualquer tipo de dor inevitável, todos se tornam magos, todos imaginam correntes e cadeias, que funcionam como fluxo e calabouço ao mesmo tempo, em uma rotineira sintonia coletiva. Naquele mundo fantástico, cada criatura é jogada à própria sorte, fazendo com que as velhas sinas sejam desmanchadas no ar, enquanto os novos sinos não param de anunciar a liberdade da busca pela felicidade, ou simplesmente, da busca pelo sofrimento ideal.

O mundo inteiro ajoelha-se diante da explosão estrelar devastadora, que origina lobos famintos uns pelos outros. O horror espalha-se incessantemente naquele pobre lugar, fazendo da degeneração um vício e da decadência uma saída providencial pelos fundos.

Aquele é um mundo onde loucura e banalidade se confundem, onde todos teimosamente pretendem sobreviver dentro das suas ilimitadas potências, onde, enfim, a carne está rasgada, a alma está ferida, mas os devaneios e delírios não deixam de construir roteiros homéricos, ilustradores dos tropeções mais ridículos, das vitórias mais risíveis e das conquistas mais corriqueiras.