quarta-feira, 4 de julho de 2012

Você




Esse seu jeito, todo seu, de tossir ou de espirrar. Esses barulhos que você faz ao mastigar ou ao engolir. Essa sua postura vulnerável diante do que você gosta demais. Esses seus cuspes de quando fala de maneira mais empolgada. Esse seu olhar forçadamente confiante de quando acorda vigiado, ou de quando quer esconder algum susto ou alguma vergonha. Essa sua maneira despercebida de impor ritmo calculado ao corpo, a depender do que estiver acontecendo. Essa sua voz ingenuamente firme de quando fala sobre coisas tão suas e tão desprezadas pelos outros. Esse seu desconforto, por vezes disfarçado, por vezes escancarado, de quando conhecidos seus, de contextos diferentes, se encontram num mesmo lugar com você. Essas satisfações desnecessárias que você dá a quem só queria socializar breve e automaticamente. Essa sua capacidade de ser suprimido em situações de que tanto se arroga saber lidar. Esse seu riso sem graça...

Isso tudo e muito mais. Isso tudo, menos esses seus pesados suspiros distraídos e essas suas lágrimas no travesseiro, que são o charme fino do seu íntimo. De resto, isso tudo não passa de sua superfície grosseira e de sua humanidade exposta, que te banalizam de forma truculenta, cravando você na atmosfera desconfortável do meu coração.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A fonte




Meio impaciente, fui depressa em direção ao precipício e vislumbrei tudo de uma vez. Olhando e indo, indo e olhando, eu via tudo, sem na verdade ver nada. Eu sentia tudo, sem na verdade sentir nada. Eu queria ser tudo, sem de verdade querer ser nada.

E, assim, nesse vôo em que me encontro agora, de corpo e alma em direção ao horizonte, fecho os olhos sem discernimento algum, com a esperança de tocar, ao menos por um milésimo de segundo, algum pedaço de chão que, em mim, toque de volta, antes do impacto eminente, com alguma sublime emoção.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Daquele que se agarrou ao chão


Com as pontas dos dedos,
Se segura no chão.
Com toda a sua força infalível,
Se prende ao chão.

A primeira parte se destaca,
Quase risonha.
A segunda nem avisa,
De vergonha.
E a terceira já nem se percebe,
Medonha.

Assim ele vai-se indo,
Seguro ao chão.
Até que não sobra nada.
Não sobra braço.
Não sobra perna.
Não sobra mão.

E um último grito se ouve.
Quase como uma comemoração.
Uma insana comemoração.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Suspiro



Essa folha em branco tenta absorver esse suspiro forte e profundo, que acaba de me ocorrer. Mas de um suspiro distraído, não se tira lição, nem se tem qualquer solução.

Ele simplesmente acontece, revelador e espontâneo. Embora também seja misterioso e momentâneo. É quase um nada. Suspiro sem encaixe, sem lugar, sem perspectiva, sem vontade. Longa respiração, que diria tudo, se pudesse, se não fosse essa mistura de tanta coisa. Se não fosse essa coisa que se perde, como levada pelo vento, como num descuido distraído.

Um suspiro, até de mim mesmo, desconhecido. Um suspiro que insinua meus mais incompreensíveis desejos. Um suspiro assim, que, por mais corriqueiro que seja, vem gravemente de dentro. Bem lá de onde estou, em desarmonia com o mundo, fora do ar, meio ansioso, em suspensão. Suspirando entre o raso e o profundo, em uma oculta hibernação.  

Mortalidade




Os filhos enterram os pais
Que enterram os filhos
Que enterram as esposas
Que enterram os maridos

Assim um amigo enterra o outro
E o esperado se confirma.
Assim uma pessoa está na outra
Como a morte está na vida

Não dirão dos velórios
Tudo o que já disseram
Das batidas do relógio
Nem sempre foi a vida
Nem sempre foi a morte
Tudo o que de lá trouxeram