sábado, 13 de dezembro de 2014

Percepção




Sem notar, deixava o cotovelo atritando sobre a mesa. Ao sentar ou ao deitar, não percebia o corpo meio torto. Às vezes, enquanto andava, sentia uma dor muito fina, como se algum espinho muito pequeno tivesse atravessado a sua pele. Quase sempre, no meio dos afazeres, alguma luminosidade lhe agredia os olhos. E era raro não ter que lidar com alguma saliência mais desconfortável, onde quer que se recostasse.

Mas eram tão comuns esses pequenos desconfortos, que nem se sentia direito. Achava que isso devia fazer parte do próprio ato de viver. Sem pensar muito, acreditava que isso fosse da própria natureza do existir. Só de vez em quando, alguma alma generosa lhe aconselhava outras formas de ser corpo. O que ele seguia com ar de obediência, mas como se estivesse realizando um ato muito excepcional. E, no geral, ia levando a vida assim mesmo, com essas dores imperceptíveis infestando o seu jeito banal de ser humano; com essas minúsculas picadas de mosquito dando forma ao seu íntimo, sem perceber.

Sono na tempestade



Pairava no ar, o aquecimento que antecede os temporais
Risadas distantes me chegavam
Um sono imprevisto me embalou
Eu não sabia se sonhava ou se cansava

Na minha imaginação havia esta lembrança:

Eu respirava em uma rua calma
Por onde umas poucas pessoas de vestes simples
Passavam

Eu parava no meio da rua
E nenhum carro passava
- era a liberdade.

Dava pra ver, ao longe, um horizonte laranja
Eu estava pequeno e amplo
Eu era a minha própria criança

Suei muito de calor
Esse sono é o maior que eu não vi
Faltava chover 
Para o meu corpo encolher
Que o clima todo desabava em sonhos.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Tudo





Navegante,
com a boca toda aberta nas ondas,
na espuma das águas,
já está muito longe, a praia.

(Fui beber o mar)

Com teu corpo tão pequeno,
nessa imensidão azul,
pelo que procuras, navegante?

(Estou engolindo o mar)

Também o céu está azul, navegante.
E essa tua navegação passa bem por miragem,
aqui da terra, contemplando o mar.

(Eu quero o mar
Eu quero o mar
Eu quero o mar)

Mas como mínguas, pobre navegante,
descobrindo que nem toda a água do mundo
há de saciar.

domingo, 24 de agosto de 2014

Monstro



Há um monstro em mim
que ninguém vê.
Ele sou eu na padaria,
eu atravessando a praça,
eu olhando fundo.
E através.

Há um monstro em mim,
que passa pelo senhor e não ajoelha,
e ninguém ouve,
e ninguém vê.
Eu sou tão invisível quanto ele.

Há um monstro em mim
que dorme triste em esquinas
dentro de mim,
e que se arroga firme, sem efeito,
a não ser em mim.

Por onde ando,
sigo acompanhado.
Por onde vivo,
ele vai calado.
E há em mim
esse monstro abandonado.

sábado, 2 de agosto de 2014

Perfumes




Dessas ruas escuras,
vazias,
sempre exalam cheiros e perfumes teus,
porque para mim
toda a doçura que há no mundo é tua.

Nessas ruas anoitecidas
e silenciosas,
por onde passo pra qualquer lugar
(sou eu quem atravesso a cidade)
e piso seus calçamentos desconfortáveis,
alguma voz, uma conversa de portão,
eu atravesso.

Nessas ruas sonolentas
por onde passo
sem sequer perceber,
é você quem amorena a minha mente
e se faz lua nesse céu nublado.
É você quem enche meus pulmões
desses aromas sonhados, recordados...
que me fazem percorrer pela cidade novamente,
e mais uma vez,
depois de já ter por ela toda caminhado...