sábado, 31 de maio de 2014

Deficiência




Faz tempo que ele não ouvia mais as palavras, apenas os tons. Não se sabe se por causa disso ou se por consequência, no seu corpo vingava uma nova química. Toda vez que conversava com gente, sentia um sono de dormir. É que seu ouvido há muito perdera a capacidade de escutar ideias, agora só tirava das vozes um ritmo, como uma canção de ninar. Só conseguia captar a vontade alheia, parou de enxergar conteúdos. Não sabia mais de nada, só que sentia os movimentos do mundo, mais nada.

Pedras se chocando, água derramando, cães latindo, corações batendo, e tudo soando afinado, desafinado ou ganhando afinação. Assim seguia o seu ouvido, captando melodias aonde não existia. Não existia? Ele não sabia, só sabia que não podia mais escolher. Acostumou-se, então. Fez até um catálogo todo próprio, dentro de sua cabeça, por onde passou a reconhecer as pessoas pela canção que cada uma emanava de sua boca. De sua boca não, ele já não captava um som isolado, vinha dos outros sempre um conjunto de transpirações que expandia auras melódicas cada vez mais sedimentadas.

E nesse novo universo que, pra ele, surgia, já não se notava mais as presenças. Com as presenças ele fazia o que fazemos com as ausências, misturava música e gente, centrifugava pessoa e melodia. Mais que isso, ele já nem via mais as gentes, ou as via demasiadamente. Pois agora só via harmonias e desarmonias. E as via andando pelas ruas, aproximavam-se, afastavam-se. Enxergando-as como quem ouve o som das cores, como quem escuta o cheiro dos amores, como quem pressente movimentos de tambores. Ele as sentia pelos ritmos que traziam. Pelos ritmos que cada uma, por si, expandia...

Apesar disso, ninguém se deu por essa sua estranha alteração, ninguém percebeu essa sua deficiência, que muito o assustava, não pelo que era, mas pelo que podia parecer. E o seu olhar saiu por ai emanando tanta graça, que as pessoas se sentiam elogiadas, não ameaçadas, por tamanha esquisitice, por tamanha maestria, quase uma magia, que só não reprimiam mesmo porque não sabiam.

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