Faz tempo que ele não ouvia mais as palavras, apenas os tons. Não se sabe se
por causa disso ou se por consequência, no seu corpo vingava uma nova química.
Toda vez que conversava com gente, sentia um sono de dormir. É que seu ouvido
há muito perdera a capacidade de escutar ideias, agora só tirava das vozes um
ritmo, como uma canção de ninar. Só conseguia captar a vontade alheia, parou de
enxergar conteúdos. Não sabia mais de nada, só que sentia os movimentos do
mundo, mais nada.
Pedras se chocando, água derramando, cães latindo, corações batendo, e tudo
soando afinado, desafinado ou ganhando afinação. Assim seguia o seu ouvido,
captando melodias aonde não existia. Não existia? Ele não sabia, só sabia que
não podia mais escolher. Acostumou-se, então. Fez até um catálogo todo próprio,
dentro de sua cabeça, por onde passou a reconhecer as pessoas pela canção que
cada uma emanava de sua boca. De sua boca não, ele já não captava um som
isolado, vinha dos outros sempre um conjunto de transpirações que expandia
auras melódicas cada vez mais sedimentadas.
E nesse novo universo que, pra ele, surgia, já não se notava mais as
presenças. Com as presenças ele fazia o que fazemos com as ausências, misturava
música e gente, centrifugava pessoa e melodia. Mais que isso, ele já nem via
mais as gentes, ou as via demasiadamente. Pois agora só via harmonias e
desarmonias. E as via andando pelas ruas, aproximavam-se, afastavam-se.
Enxergando-as como quem ouve o som das cores, como quem escuta o cheiro dos
amores, como quem pressente movimentos de tambores. Ele as sentia pelos ritmos
que traziam. Pelos ritmos que cada uma, por si, expandia...
Apesar disso, ninguém se deu por essa sua estranha alteração, ninguém
percebeu essa sua deficiência, que muito o assustava, não pelo que era, mas
pelo que podia parecer. E o seu olhar saiu por ai emanando tanta graça, que as
pessoas se sentiam elogiadas, não ameaçadas, por tamanha esquisitice, por
tamanha maestria, quase uma magia, que só não reprimiam mesmo porque não
sabiam.
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